Tinha
sido numa quinta-feira à noite da primeira semana académica do ano que eu lhe
tinha pedido para me rasgar a capa. Já tinha andado uns largos meses a pensar
nisso mas não o queria fazer sem ter certezas da minha parte. Naquela semana e
nos poucos meses que antecederam àquela quinta-feira eu tinha todas as certezas
do mundo. E a minha capa foi rasgada.
Pedir
a alguém que nos rasgue a capa é uma homenagem e, por isso mesmo, deve ser
feita de forma totalmente consciente pois homenagens não se prestam a toda a
gente. E eu quis prestar-lhe uma homenagem por tudo aquilo que ele simbolizava
para mim. Afinal, a nossa história começou na noite do concurso de tunas do
Estoril.
Ele
retribuiu essa homenagem. Perguntei-lhe se tinha a certeza pois eu não queria
que ele me pedisse para rasgar a capa dele apenas por eu lhe ter pedido para
rasgar a minha. Ele garantiu-me que não e assim ficámos os dois com um rasgão
ao meio, nas nossas capas. O rasgão ao meio é dedicado à pessoa com quem
estamos comprometidos, o que enfatiza ainda mais a importância de pensar bem
antes de o fazer. Se algo corresse mal, teríamos que voltar a coser aquele
rasgão e eu penso que não haja algo pior do que retirar uma homenagem a alguém.
Achava eu.
A
capa para mim é o maior símbolo da nossa vida académica, sejamos praxantes ou
não. Nunca me hei-de esquecer da pessoa que me traçou a capa pela primeira vez.
Ele naquele dia não fazia ideia por que é que eu insisti tanto para que fosse ele
a traçar-me a capa. Mas eu sabia, eu sentia que era a pessoa certa. O maior e
melhor exemplo de Veterano que eu tinha conhecido enquanto caloira, por mais
invisível que eu fosse para ele. Foi com ele que, sem ele saber, aprendi a ser
Veterana. E um ano e meio depois é um dos amigos que mais prezo.
Foi
com a capa sobre os meus joelhos que dei o primeiro beijo à pessoa que mais
amei, ao som de uma versão acústica d’ ”O Ciclo Sem Fim” de uma tuna da qual já
não me lembro do nome. Foi com a capa nos meus ombros que lhe dei o segundo
beijo. E foi enrolada na capa que estive até às 4h da manhã no carro com uma
das minhas melhores amigas a falar sobre tudo o que tinha acontecido.
Meses
depois foi com a capa traçada que me desfiz em lágrimas quando a Tunística
tocou a “Balada do Estudante” e ele não estava lá. Estava em Erasmus e sempre
presente no meu pensamento. Foi de capa traçada que o Luís me abraçou como bom
amigo que é, dizendo-me que no ano seguinte eu já poderia ouvir a Tunística a
tocar a música que mais comove os estudantes daquela faculdade abraçada a ele,
que agora estava ausente.
E
foi no ano seguinte que, de capa traçada, o tive ao meu lado no último dia da
semana de Praxe e chorei a ouvir a tal música, mas sentindo-me mal. Agora ele
estava presente, mas talvez preferisse chorar pela sua ausência do que chorar
por ele ter perdido a capa. Estúpido não é? Agora tinha-o ali, presente, ao meu
lado e estava outra vez a chorar.
A
verdade é que nesse dia ele perdeu a capa. Deixou o maior símbolo da vida
académica de um estudante à guarda de nem sabe bem quem. Deixou a maior
homenagem que já me fizeram, enquanto Veterana, dobrada no chão, misturada com
outras capas, acabando por se deixar confundir. Eu disse-lhe para ter cuidado e
ele assegurou-me de que estava tudo sob controlo. Uma hora depois ligou-me, já
eu estava a uns 2 km dali, a perguntar se por acaso eu não sabia da capa dele.
Primeiro veio a raiva, depois a frustração e, por fim, a desilusão. Não cabia
em mim o valor que ele não dava à capa para não a proteger acima de tudo, por
mais que estivesse entretido a enfeitar os caloiros com peixe, ovos e ketchup.
Não cabia em mim ele simplesmente ter ignorado quando o avisei para ele ter
cuidado com a capa e ele me ignorou porque provavelmente eu tinha sido chata
durante aquela semana por tê-lo chamado a atenção algumas vezes quando achei
que ele não estava a agir correctamente. Não cabia em mim ele simplesmente não
ter cuidado da homenagem mais preciosa que já me fizeram.
E no dia em que ele perdeu a capa, tudo começou
a desmoronar-se. Dias mais tarde contei-lhe de algumas coisas que me
incomodavam e ele pediu-me um tempo. A justificação deixou-me de queixo no chão
e de lágrimas nos olhos. Voltámos, mais tarde, mas nunca mais foi o mesmo.
Todas
as certezas do mundo dissiparam-se e agora eu sou apenas um passado por ser enterrado,
uma capa rasgada e perdida. Basta-lhe comprar uma capa nova, começar uma vida nova,
uma nova nascente.
E
eu fico por aqui a coser finalmente os emblemas na capa, sem certezas de nada.
A capa permanecerá rasgada porque fiz o rasgão consciente e, por mais que não
possamos prever o futuro, é uma marca do passado. De um passado que eu não
pretendo enterrar, mas sim transformar num diferente presente.
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