quarta-feira, 2 de julho de 2008

Violação

É Inverno. Sao seis horas da tarde, faz frio, está escuro e chove... muito!
Uma jovem está sentada no passeio, apenas protegida pela sua gabardina, chora. O rímel escuro desenha um borrão na sua cara, e o cabelo molhado cola-se à testa, à boca e ao pescoço.
Com o meu guarda-chuva, desço a rua silenciosa, e deparo-me com esta rapariga com ar tão desamparado. Um misto de pena, indiferença e compaixão assolou a minha alma. Sentei-me a seu lado e ela mergulhou a cara nas mãos, como se tivesse vergonha do seu estado emocional. Se calhar tinha. Comecei a ouvir soluços de um choro desesperado e abracei esta estranha que se tornara familiar para mim.
Levantámo-nos e levei-a até minha casa, para trocar de roupa e aquecer. Não trocámos quaisquer palavras, apenas se ouvia a melodia da chuva e os constrangidos passos que nos fariam chegar ao destino pretendido. Descemos a rua, virámos à direita, e depois à esquerda, passámos pela igreja, virámos à esquerda e depois à esquerda novamente. Os carros passavam por nós, atirando com uma grande quantidade de água das poças em cima, outros abrandavam de maneira a que não nos atingisse.

A casa acolheu-nos calorosamente, apesar da escuridão que a assombrava. Dei roupas secas à rapariga, e comecei a fazer um chá. Enquanto ela se trocava, liguei o pequeno televisor - que, mais tarde, resultou numa espécie de alívio - para evitar um silêncio constrangedor. Contudo, o volume estava baixo, caso houvesse troca de palavras, ou quem sabe, um diálogo.
Dei-lhe o chá a beber, e pus pão, doce, manteiga, bolachas, fiambre e queijo, fruta, cereais em cima da mesa. Lanchei também e notei que ela não queria pensar em mais nada, portanto fixou os olhos na televisão, no canal da Fox.
Do nada, ouviu-se:
- Obrigada.

Foi aí que me explicou a história, entre soluços e lágrimas que não se seguraram na alma.
Imaginei a casa cheia de frestas, o quarto com uma cama de casal provavelmente destinada a mais situações com jovens arrastadas para o pior dos pesadelos, a porta trancada e a pequena janela que se revelou a única possível fuga. Imaginei o homem, aliás, o carrasco a prender-lhe os braços e a abafar os seus gritos, a sua respiração ofegante de prazer derivado do sofrimento de outros, imaginei este ser inútil a sorrir e a gritar com a rapariga, as ameças que ele deve ter feito para obter uma satisfação sexual que provavelmente não tem há algum tempo - ou nunca teve, ou teve recentemente também com uma menina inocente - imaginei o horror, imaginei as pessoas que ouviram e ignoraram os pedidos de ajuda, imaginei a inocência de criança que todas as jovens têm durante a sua adolescência, imaginei como esta inocência acabara de desaparecer e dar lugar ao medo, ao terror e à desconfiança, imaginei como isto mudaria a sua vida para sempre. Mas tudo o que imaginei estava tão longe do que a rapariga sentia, no pior momento da sua vida.
Os meus olhos ficaram perplexos e acompanhei a sua dor, sentindo que era inútil eu ouvi-la. Não pensei nunca ter de ouvir um relato assim.

Dias mais tarde fomos à Polícia, só que não havia dados suficientes para encontrar o sujeito. E hoje, ele continua por aí, ao virar da esquina ou no outro lado do mundo, a destruir a liberdade e os sonhos de outras raparigas, como esta. Foi tudo isso que me fez ver a vida com outros olhos, e a realidade de uma forma mais responsável e atenta.
E a indiferença que sentira ao início, essa indiferença poderia ter-me feito ignorar o que uma rapariga debaixo de chuva estava a sentir.

Às vezes olhamos para os outros, às vezes até os vemos mesmo, mas pomos a nossa pessoa sempre em primeiro lugar e ficamos alheios a tudo o que nos poderia pôr mais atentos, salvar e tornar melhores pessoas. Para nós, estranhos são desconhecidos que têm uma vida tão ou mais normal que a nossa. Mas nem sempre é assim...

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