sábado, 25 de janeiro de 2014

O dia em que ele perdeu a capa

Tinha sido numa quinta-feira à noite da primeira semana académica do ano que eu lhe tinha pedido para me rasgar a capa. Já tinha andado uns largos meses a pensar nisso mas não o queria fazer sem ter certezas da minha parte. Naquela semana e nos poucos meses que antecederam àquela quinta-feira eu tinha todas as certezas do mundo. E a minha capa foi rasgada.

Pedir a alguém que nos rasgue a capa é uma homenagem e, por isso mesmo, deve ser feita de forma totalmente consciente pois homenagens não se prestam a toda a gente. E eu quis prestar-lhe uma homenagem por tudo aquilo que ele simbolizava para mim. Afinal, a nossa história começou na noite do concurso de tunas do Estoril.

Ele retribuiu essa homenagem. Perguntei-lhe se tinha a certeza pois eu não queria que ele me pedisse para rasgar a capa dele apenas por eu lhe ter pedido para rasgar a minha. Ele garantiu-me que não e assim ficámos os dois com um rasgão ao meio, nas nossas capas. O rasgão ao meio é dedicado à pessoa com quem estamos comprometidos, o que enfatiza ainda mais a importância de pensar bem antes de o fazer. Se algo corresse mal, teríamos que voltar a coser aquele rasgão e eu penso que não haja algo pior do que retirar uma homenagem a alguém. Achava eu.

A capa para mim é o maior símbolo da nossa vida académica, sejamos praxantes ou não. Nunca me hei-de esquecer da pessoa que me traçou a capa pela primeira vez. Ele naquele dia não fazia ideia por que é que eu insisti tanto para que fosse ele a traçar-me a capa. Mas eu sabia, eu sentia que era a pessoa certa. O maior e melhor exemplo de Veterano que eu tinha conhecido enquanto caloira, por mais invisível que eu fosse para ele. Foi com ele que, sem ele saber, aprendi a ser Veterana. E um ano e meio depois é um dos amigos que mais prezo.

Foi com a capa sobre os meus joelhos que dei o primeiro beijo à pessoa que mais amei, ao som de uma versão acústica d’ ”O Ciclo Sem Fim” de uma tuna da qual já não me lembro do nome. Foi com a capa nos meus ombros que lhe dei o segundo beijo. E foi enrolada na capa que estive até às 4h da manhã no carro com uma das minhas melhores amigas a falar sobre tudo o que tinha acontecido.

Meses depois foi com a capa traçada que me desfiz em lágrimas quando a Tunística tocou a “Balada do Estudante” e ele não estava lá. Estava em Erasmus e sempre presente no meu pensamento. Foi de capa traçada que o Luís me abraçou como bom amigo que é, dizendo-me que no ano seguinte eu já poderia ouvir a Tunística a tocar a música que mais comove os estudantes daquela faculdade abraçada a ele, que agora estava ausente.

E foi no ano seguinte que, de capa traçada, o tive ao meu lado no último dia da semana de Praxe e chorei a ouvir a tal música, mas sentindo-me mal. Agora ele estava presente, mas talvez preferisse chorar pela sua ausência do que chorar por ele ter perdido a capa. Estúpido não é? Agora tinha-o ali, presente, ao meu lado e estava outra vez a chorar.

A verdade é que nesse dia ele perdeu a capa. Deixou o maior símbolo da vida académica de um estudante à guarda de nem sabe bem quem. Deixou a maior homenagem que já me fizeram, enquanto Veterana, dobrada no chão, misturada com outras capas, acabando por se deixar confundir. Eu disse-lhe para ter cuidado e ele assegurou-me de que estava tudo sob controlo. Uma hora depois ligou-me, já eu estava a uns 2 km dali, a perguntar se por acaso eu não sabia da capa dele. Primeiro veio a raiva, depois a frustração e, por fim, a desilusão. Não cabia em mim o valor que ele não dava à capa para não a proteger acima de tudo, por mais que estivesse entretido a enfeitar os caloiros com peixe, ovos e ketchup. Não cabia em mim ele simplesmente ter ignorado quando o avisei para ele ter cuidado com a capa e ele me ignorou porque provavelmente eu tinha sido chata durante aquela semana por tê-lo chamado a atenção algumas vezes quando achei que ele não estava a agir correctamente. Não cabia em mim ele simplesmente não ter cuidado da homenagem mais preciosa que já me fizeram.

E no dia em que ele perdeu a capa, tudo começou a desmoronar-se. Dias mais tarde contei-lhe de algumas coisas que me incomodavam e ele pediu-me um tempo. A justificação deixou-me de queixo no chão e de lágrimas nos olhos. Voltámos, mais tarde, mas nunca mais foi o mesmo.

Todas as certezas do mundo dissiparam-se e agora eu sou apenas um passado por ser enterrado, uma capa rasgada e perdida. Basta-lhe comprar uma capa nova, começar uma vida nova, uma nova nascente.

E eu fico por aqui a coser finalmente os emblemas na capa, sem certezas de nada. A capa permanecerá rasgada porque fiz o rasgão consciente e, por mais que não possamos prever o futuro, é uma marca do passado. De um passado que eu não pretendo enterrar, mas sim transformar num diferente presente.
Follow my blog with Bloglovin

Sem comentários: